A democracia nasceu como um sistema de governo fundado na igualdade de direitos políticos, na participação cidadã e na defesa das liberdades individuais. Contudo, como advertiu C. S. Lewis em Cartas de um Diabo ao seu Aprendiz (1942), há um desvio sutil e corrosivo que pode transformar a democracia em algo oposto à sua verdadeira essência.
Nas cartas, o demônio Fitafuso explica a seu aprendiz como manipular os homens distorcendo o conceito de democracia. A ironia da obra mostra como vícios humanos, especialmente a inveja e o ressentimento, podem ser legitimados pelo uso mágico da palavra “democrático”:
“A novidade prazerosa da situação presente é que vocês podem sancioná-la — torná-la respeitável ou até louvável — pelo uso encantatório da palavra mágica democrático.”
Assim, o que antes era reconhecido como vício (a inveja) passa a ser celebrado como virtude social. A linguagem é sequestrada: palavras nobres são esvaziadas de seu sentido original e convertidas em justificativa para nivelar todos por baixo.
O medo de se destacar
Lewis
observa que, sob essa lógica, as pessoas passam a reprimir aquilo que as torna singulares:
“Os jovens de hoje muitas vezes suprimem um gosto incipiente por música
clássica ou boa literatura porque isso os impediria de serem iguais a todo o
mundo (...) Elas poderiam tornar-se indivíduos (que horror!).”
A
democracia corrompida gera uma cultura em que a diferença não é vista como
riqueza, mas como ameaça. O talento, a virtude e a excelência tornam-se motivo
de suspeita.
A educação como instrumento de nivelamento
O campo
educacional, para Lewis, é terreno fértil para essa distorção. A falsa
democracia impede que o mérito floresça, mantendo os mais capazes acorrentados
à mediocridade:
“Assim, o aluno mais inteligente permanecerá democraticamente
acorrentado a seus colegas da mesma idade por toda a sua carreira escolar, e um
menino capaz de compreender Ésquilo ou Dante será obrigado a ficar sentado,
ouvindo seus contemporâneos tentando soletrar ‘Vovô viu a uva’.”
Professores
transformam-se em “babás” ocupadas em confortar os ignorantes, enquanto os
poucos que desejam aprender são desestimulados. O resultado é a produção
sistemática de mediocridade.
A tirania invisível da “democracia mágica”
Lewis
recorre a uma metáfora poderosa: o tirano grego que cortava com a foice as
espigas mais altas para que todas ficassem no mesmo nível. Nas ditaduras, o
nivelamento era imposto pela força. Mas a “democracia mágica” vai além:
“As hastes menores vão agora passar a cortar fora as pontas das mais
altas. As grandes começarão a cortar as suas próprias pontas pelo desejo de
serem como todo o mundo.”
A tirania
já não precisa de ditadores. A própria sociedade se vigia, e os indivíduos
mutilam suas potencialidades para não destoar da massa.
O resultado final: uma nação enfraquecida
O objetivo dessa distorção, segundo a lógica diabólica de Fitafuso, é produzir sociedades incapazes de resistir a desafios reais:
“Pois a ‘democracia’ ou o ‘espírito democrático’ (no sentido diabólico) produz uma nação desprovida de grandes homens, uma nação composta essencialmente de analfabetos, seres moralmente frouxos (...) cheios de autoconfiança que as bajulações criaram em cima da ignorância, e molengas em virtude de toda uma vida de mimos.”
O quadro
é claro: povos frágeis, nivelados por baixo, que perdem sua capacidade de
excelência intelectual e moral, tornando-se presas fáceis de sistemas
autoritários ou de nações mais fortes.
Democracia verdadeira vs. democracia corrompida
A verdadeira democracia garante liberdade, justiça e oportunidades iguais, sem jamais eliminar a diferença ou punir a excelência. Já a democracia corrompida descrita por Lewis transforma a igualdade em pretexto para mediocridade e conformismo, degenerando-se em tirania invisível.
Lewis, ao
vestir a crítica na voz de um demônio, revela o caráter perverso dessa
inversão: o vício celebrado como virtude, a inveja travestida de justiça, a
mediocridade aclamada como liberdade.
Conclusão
Mais de 80 anos após sua publicação, Cartas de um Diabo ao seu Aprendiz permanece atual. Em tempos em que a palavra “democracia” é constantemente evocada como retórica de poder, a lição de Lewis nos alerta: quando a democracia se torna instrumento de nivelamento por baixo, ela trai a si mesma.
Preservar
sua essência é defender a liberdade, a justiça e a dignidade da diferença — e
resistir à tentação diabólica de confundir igualdade de direitos com
uniformidade forçada.
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