terça-feira, 26 de agosto de 2025

Quando o Legislativo trai a democracia: o veto pessoal à vontade da maioria

Em uma democracia representativa legítima, a vontade da maioria dos parlamentares deveria ser automática e soberana — pois, em última instância, representa a vontade do povo. No entanto, no Brasil, essa lógica tem sido sistematicamente sabotada por uma anomalia institucional: o poder monocrático dos presidentes da Câmara e do Senado de decidir se determinado tema será ou não pautado. E mais grave: mesmo quando há maioria de assinaturas, apoio popular ou clamor público.

Essa falha não é apenas um detalhe técnico. É uma violação estrutural da democracia.

No episódio recente em que a Câmara dos Deputados foi fisicamente ocupada por parlamentares bolsonaristas em protesto contra a prisão domiciliar do ex-presidente e em defesa de pautas como a anistia e o fim do foro privilegiado, o presidente da Casa, Hugo Motta, condenou os atos e pediu respeito à instituição. Contudo, em momento algum indicou que pautaria qualquer das matérias exigidas, mesmo aquelas com apoio formal de dezenas de parlamentares.

Esse é apenas um retrato de um vício de origem que se repete há décadas, independentemente de espectro ideológico. A decisão de pautar ou não um tema — que deveria ser regida pela maioria — fica nas mãos de um único deputado. É o que ocorre também com pedidos de impeachment, PECs, CPIs e outros temas de profundo interesse da sociedade.

No Senado Federal, Davi Alcolumbre protagonizou mais um episódio revelador. Ao enfrentar a obstrução de sessões presenciais por parte de senadores oposicionistas, decidiu convocar sessões remotas, com o claro objetivo de seguir adiante com temas de sua própria escolha. Contudo, quando se trata de pedidos de impeachment de ministros do STF, por exemplo — que têm apoio significativo de senadores — Alcolumbre simplesmente se recusa a pautar. Não por falta de rito, nem por impedimento jurídico, mas por decisão política — ou pessoal.

Legal ou não, trata-se de uma aberração democrática. O sistema brasileiro naturalizou o inaceitável: permitir que um único parlamentar possa bloquear a vontade de centenas de colegas eleitos, e, por extensão, da população que eles representam.

A Constituição diz que todo o poder emana do povo. Mas na prática, esse poder emana da caneta de quem ocupa a presidência da Casa Legislativa. Isso é inconstitucional no espírito, ainda que não o seja na letra.

É preciso que a sociedade e os próprios parlamentares rompam com essa lógica autoritária travestida de regimental. Propostas com apoio majoritário devem ser automaticamente pautadas em prazo razoável. O presidente da Casa deveria atuar como mediador técnico, e não como porteiro ideológico, financeiro ou estratégico do que será ou não discutido.

A manutenção desse modelo é mais que um erro: é uma forma de controle político que inverte a hierarquia natural da democracia, onde o povo deve ser soberano — e não um refém do ego ou do medo de quem ocupa uma cadeira de comando.

Chega de condescendência institucional com o inaceitável. Ou corrigimos essa distorção — ou admitimos, por omissão, que a democracia brasileira é apenas um teatro com roteiro pré-aprovado por quem segura a chave da pauta.

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