quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Legalidade, Moralidade e Direitos Humanos: O Dever de Recusa a Ordens Manifestamente Ilegais

 Introdução

O Estado Democrático de Direito, consolidado pela Constituição Federal de 1988, estabelece limites claros ao exercício do poder público. Esses limites não se restringem apenas à conformidade formal dos atos com a lei, mas também à observância de valores superiores, como a moralidade administrativa e o respeito aos direitos fundamentais. Nesse contexto, emerge uma questão crucial: até que ponto agentes públicos podem se refugiar na hierarquia para justificar o cumprimento de ordens que, embora revestidas de formalidade legal, são substancialmente ilegítimas?

A história demonstra que a defesa da "obediência cega" não resiste ao crivo jurídico e ético. Dos julgamentos de Nuremberg ao sistema interamericano de direitos humanos, consolidou-se o entendimento de que ordens manifestamente ilegais ou atentatórias à dignidade humana não devem ser cumpridas, sob pena de responsabilidade do executor.

 

1. Legalidade e moralidade no Direito Administrativo

A Constituição Federal, em seu artigo 37, estabelece que a Administração Pública deve obedecer não apenas ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. A legalidade, portanto, não é isolada: um ato só será válido quando respeitar também valores éticos e a finalidade pública.

Isso significa que nem tudo o que é “legal” no sentido formal é legítimo. Um ato administrativo ou judicial pode ser produzido dentro dos trâmites processuais corretos, mas ainda assim ser nulo por falta de motivação, desvio de finalidade ou violação à moralidade administrativa.

 

2. O dever de obediência e seus limites

O regime jurídico dos servidores públicos reconhece a importância da hierarquia e da disciplina. A Lei nº 8.112/90, por exemplo, dispõe que o servidor deve cumprir ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.

Essa ressalva é fundamental. A ordem administrativa ou judicial que carece de fundamento, que se apoia em manipulações ou distorções, ou que afronta direitos fundamentais, não deve ser obedecida. O cumprimento de tais ordens não exime o executor de responsabilidade: ao contrário, pode torná-lo coautor da ilegalidade.

 

3. O precedente de Nuremberg e sua projeção atual

Nos julgamentos de Nuremberg (1945-1946), oficiais nazistas alegaram que apenas cumpriam ordens superiores ao participarem de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Essa tese foi rechaçada: consolidou-se o Princípio IV de Nuremberg, segundo o qual a obediência a ordens não afasta a responsabilidade individual quando a escolha moral era possível.

Esse entendimento ecoa no direito internacional e inspira o dever contemporâneo de recusa a ordens arbitrárias. No Brasil, ele se reflete no dever constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e na exigência de motivação para todos os atos decisórios (art. 93, IX, CF).

 

4. Ordens ilegais, direitos fundamentais e direitos humanos

A evolução jurídica pós-Nuremberg ampliou o debate. Não se trata apenas de ordens relacionadas a crimes contra a humanidade, mas também daquelas que violam direitos humanos e fundamentais.

Exemplos:

·         Mandado de prisão sem tipificação legal do crime (violação do princípio da legalidade penal).

·         Busca e apreensão sem fundamentação fática (violação da inviolabilidade de domicílio).

·         Ordens de tortura ou maus-tratos (violação da dignidade da pessoa humana).

·         Determinações de repressão arbitrária a manifestações pacíficas (violação à liberdade de expressão e reunião).

Nesses casos, ainda que exista a “aparência de legalidade” – um documento assinado por autoridade competente –, a substância do ato é inconstitucional e ilegal, devendo ser recusado.

 

5. A responsabilidade do agente executor

O agente que cumpre ordens manifestamente ilegais ou atentatórias aos direitos humanos não pode se escudar na hierarquia. Ele responde civil, administrativa e penalmente pelo ato, conforme prevê o ordenamento jurídico brasileiro e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Inclusive, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já condenou o Estado brasileiro em casos de violações praticadas por agentes públicos que alegaram apenas estar cumprindo ordens. Isso reforça que a proteção da dignidade humana está acima da obediência cega.

 

Conclusão

A defesa de que “nem tudo que é legal é moral” assume, no Direito Administrativo e no Direito Constitucional, um caráter prático e vital: atos formalmente regulares, mas que afrontam a moralidade ou os direitos humanos, são inválidos e não podem ser obedecidos.

O precedente de Nuremberg permanece vivo: o cumprimento de ordens não absolve a responsabilidade individual diante de atos ilegais ou atentatórios à dignidade humana. No Brasil, o dever do servidor e do agente público é claro: obedecer ordens legais e legítimas, e recusar aquelas que violem a Constituição, a moralidade administrativa e os direitos humanos.

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