Introdução
O Estado Democrático de Direito, consolidado pela Constituição Federal de 1988, estabelece limites claros ao exercício do poder público. Esses limites não se restringem apenas à conformidade formal dos atos com a lei, mas também à observância de valores superiores, como a moralidade administrativa e o respeito aos direitos fundamentais. Nesse contexto, emerge uma questão crucial: até que ponto agentes públicos podem se refugiar na hierarquia para justificar o cumprimento de ordens que, embora revestidas de formalidade legal, são substancialmente ilegítimas?
A história
demonstra que a defesa da "obediência cega" não resiste ao crivo
jurídico e ético. Dos julgamentos de Nuremberg ao sistema interamericano de
direitos humanos, consolidou-se o entendimento de que ordens manifestamente
ilegais ou atentatórias à dignidade humana não devem ser cumpridas, sob pena de
responsabilidade do executor.
1. Legalidade e moralidade no Direito Administrativo
A Constituição Federal, em seu artigo 37, estabelece que a Administração Pública deve obedecer não apenas ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. A legalidade, portanto, não é isolada: um ato só será válido quando respeitar também valores éticos e a finalidade pública.
Isso
significa que nem tudo o que é “legal” no sentido formal é legítimo. Um ato
administrativo ou judicial pode ser produzido dentro dos trâmites processuais
corretos, mas ainda assim ser nulo por falta de motivação, desvio de finalidade
ou violação à moralidade administrativa.
2. O dever de obediência e seus limites
O regime jurídico dos servidores públicos reconhece a importância da hierarquia e da disciplina. A Lei nº 8.112/90, por exemplo, dispõe que o servidor deve cumprir ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.
Essa
ressalva é fundamental. A ordem administrativa ou judicial que carece de
fundamento, que se apoia em manipulações ou distorções, ou que afronta direitos
fundamentais, não deve ser obedecida. O cumprimento de tais ordens não exime o
executor de responsabilidade: ao contrário, pode torná-lo coautor da
ilegalidade.
3. O precedente de Nuremberg e sua projeção atual
Nos julgamentos de Nuremberg (1945-1946), oficiais nazistas alegaram que apenas cumpriam ordens superiores ao participarem de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Essa tese foi rechaçada: consolidou-se o Princípio IV de Nuremberg, segundo o qual a obediência a ordens não afasta a responsabilidade individual quando a escolha moral era possível.
Esse
entendimento ecoa no direito internacional e inspira o dever contemporâneo de
recusa a ordens arbitrárias. No Brasil, ele se reflete no dever constitucional
de respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e na exigência de
motivação para todos os atos decisórios (art. 93, IX, CF).
4. Ordens ilegais, direitos fundamentais e direitos humanos
A evolução jurídica pós-Nuremberg ampliou o debate. Não se trata apenas de ordens relacionadas a crimes contra a humanidade, mas também daquelas que violam direitos humanos e fundamentais.
Exemplos:
·
Mandado de prisão sem tipificação legal do crime
(violação do princípio da legalidade penal).
·
Busca e apreensão sem fundamentação fática
(violação da inviolabilidade de domicílio).
·
Ordens de tortura ou maus-tratos (violação da
dignidade da pessoa humana).
· Determinações de repressão arbitrária a manifestações pacíficas (violação à liberdade de expressão e reunião).
Nesses
casos, ainda que exista a “aparência de legalidade” – um documento assinado por
autoridade competente –, a substância do ato é inconstitucional e ilegal,
devendo ser recusado.
5. A responsabilidade do agente executor
O agente que cumpre ordens manifestamente ilegais ou atentatórias aos direitos humanos não pode se escudar na hierarquia. Ele responde civil, administrativa e penalmente pelo ato, conforme prevê o ordenamento jurídico brasileiro e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Inclusive, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos já condenou o Estado brasileiro em
casos de violações praticadas por agentes públicos que alegaram apenas estar
cumprindo ordens. Isso reforça que a proteção da dignidade humana está acima da
obediência cega.
Conclusão
A defesa de que “nem tudo que é legal é moral” assume, no Direito Administrativo e no Direito Constitucional, um caráter prático e vital: atos formalmente regulares, mas que afrontam a moralidade ou os direitos humanos, são inválidos e não podem ser obedecidos.
O precedente de Nuremberg permanece vivo: o cumprimento de ordens não absolve a responsabilidade individual diante de atos ilegais ou atentatórios à dignidade humana. No Brasil, o dever do servidor e do agente público é claro: obedecer ordens legais e legítimas, e recusar aquelas que violem a Constituição, a moralidade administrativa e os direitos humanos.
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